Crônicas

Sobremesa antes do Jantar

Noite quente de sexta-feira. Eu ainda não havia provado o sorvete de uma das sorveterias mais famosas da cidade. Eram 19h30min, o comércio estava fechando às 20h por causa da pandemia e eu não havia jantado. Lembrei-me dos meus hábitos oriundos da infância e o principal deles era não comer doce antes do jantar. Olhei para o céu, olhei para a noite estrelada. Olhei para a sorveteria com letreiro emborrachado negro contendo nomes e preços dos sorvetes em letras de plástico amarelo e branco, como nos anos 90.

Dane-se tudo! Eu sou adulta! Eu pago minhas contas, meu jantar e meu sorvete!

E, num ato de rebeldia quase adolescente, comprei o sorvete para comê-lo antes do jantar. Andei pela praça em frente à sorveteria me deliciando com o doce e experimentando uma sensação singular, misto de liberdade, nostalgia e desobediência prazerosa.

Terminei e fui comprar uma coxinha. Bom para mim ter comido a sobremesa antes do jantar. A sorveteria fechou pontualmente. A loja de salgados e os restaurantes continuaram abertos.

Ovos Mexidos

Parece cena de filme acordar no horário, se vestir bem, ter uma mesa de café da manhã fotogenicamente preparada para você, e saborear com calma cada quitute enquanto você lê tranquilamente um jornal.

A minha realidade de vida é outra: acordo em cima da hora (porque no dia anterior fui dormir meia noite), como algumas torradas com café, me apronto rápido e lavo minha xícara enquanto chamo um uber.

Sábado fiz diferente. Mesmo com minha pilha de livros para estudar e artigos para escrever, acordei com calma no meio da manhã, me arrumei com tranquilidade, fiz ovos mexidos para o café e saboreei tudo com paciência. Comecei a ler uma revistinha que comprei na DrograRaia para ajudar o GRAAC. Ali tem só noticias boas. Ouvi minhas músicas preferidas. Contemplei o silêncio da casa vazia. Almocei no horário que me deu na telha. Refleti que eu preciso ser mais gentil e amável quando me contam alguma coisa. Tomei café online com minhas amigas. Fiquei planejando viagens para quando a pandemia terminar. Estou escrevendo este texto e fazendo pequenas visitas na sacada para ver o pôr do sol. A vida é tão bonita quando saímos do piloto automático.

Eu vou tentar acordar mais cedo, dormir mais cedo, dormir melhor, tomar café com mais calma. Talvez eu não consiga fazer ovos mexidos todos os dias. Mas quero, ao menos sempre que possível, contemplar o mundo com mais tranquilidade.

A Cientista

“E qual sua profissão?”, me perguntou a agente de viagens. “Ah, lembrei, você é cientista, né?”.
Cientista. Quando eu era criança e ouvia falar de cientistas, eu imaginava pessoas de jaleco branco presas em laboratórios tentando encontrar a solução para importantes problemas do mundo.
“Eu sou pesquisadora… É, cientista! Eu sou cientista! Cientista não significa necessariamente ser pesquisador de ciências exatas e biológicas, não é?”, e soltei um sorriso simpático.
“Claro que não. Cientista ou pesquisador são pessoas que estudam muito, seja lá qual for a área”, respondeu a doce mulher.
É verdade. Eu sou cientista. C-i-e-n-t-i-s-t-a. Cara, que legal isso!
“Eu pesquiso soluções para que as pessoas encontrem um maior equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal. Eu busco um mundo em que as pessoas tenham mais tempo para suas famílias”, falei.
Eu tento encontrar uma solução para importantes problemas do mundo.
[Há previsões da ONU de que em 2100 teremos uma grande redução populacional. Alguns países terão suas populações reduzidas pela metade. Essa massiva e progressiva redução nas taxas globais de natalidade se devem, entre outros fatores, às escassas oportunidades que o mercado de trabalho oferece às pessoas, especialmente mulheres, para conciliarem a possibilidade de ter filhos com o sucesso profissional. O resultado, a longo prazo, é que esta redução de pessoas impacte negativamente na economia e na previdência, devido a expressiva diminuição da força de trabalho.]
Eu sou uma cientista.